21.5.09

BLADE RUNNER*


A BUSCA DE SENTIDO HUMANO


1. BLADE RUNNER E O FUTURO. FUTURO?

No momento em que vejo Blade Runner (2005), o ano de 2019 já não se apresenta assim tão longuínquo. Pelo contrário, com o ritmo frenético a que se vive actualmente, está ao virar da esquina; mais ano menos ano, estamos lá. E este é um aspecto decisivo, pois que retira uma boa parte do impacte com que na época Ridley Scott (meritoriamente, diga-se) pretendia atingir o mundo do cinema. Desde logo, pela inevitável descredibilização do cenário futurista apocalíptico aos olhos de quem hoje vê o filme. Salvo melhor opinião ou acontecimento totalmente fora das previsões da mente humana, 2019 não será certamente assim. Mas não se culpabilizem R. Scott e Philip K. Dick (um dos maiores criadores de ficção científica adaptada ao cinema): previsões como esta do futuro, em que o mundo aparece ineroxavelmente dominado pela artificialidade, pelo caos, pela soturnidade, não são outra coisa que não fruto dum crónico (e estranho?) pessimismo que há muito se instalou no espírito de todos aqueles que, nas artes em geral, e no cinema em particular, se dedicam a pensar e a imaginar o futuro.

Todavia, um tal cenário imaginado e plasmado em Blade Runner tem, mesmo hoje e pese as condicionantes já apontadas, um interesse fascinante. Ainda que valha apenas como mero exercício ficcional e já não também como previsão plausível (aliás, poder-se-á mesmo defender que esta foi a única intenção de R. Scott), o que é facto é que o "mundo" de Blade Runner tem algo de deslumbrante, de mágico, mesmo de intimista. A chuva, para além de deprimente, pode também ter o seu lado romântico ("I'm singing in the rain...", lembram-se?); a noite, para além do seu lado por vezes aterrador, pode também tornar o Homem mais vulnerável (num sentido positivo, de maior abertura a pensamentos e emoções); a própria recriação do passado em pleno cenário futurista é encantadora (bem patente no mercado onde comerciava o vendedor egípcio de cobras: aquele mercado existe hoje, tal como já existia na Idade Média!). Enfim, a Terra de Blade Runner, se num primeiro momento afasta, num segundo une, chama, aproxima.


2. NUM MUNDO ARTIFICIAL, HÁ QUEM PROCURE UM SENTIDO HUMANO

Está aqui então o cerne do filme. Em 2019, neste "mundo" de Blade Runner, (ainda) há humanos, e há também "humanos" feitos pelos humanos - os replicantes. Eram estes últimos seres, nas suas últimas versões de fabrico, em tudo idênticos aos humanos (inclusive nas emoções, sensações, pensamentos...), com uma única excepção: tinham um prazo de vida certo, e também bastante curto - viviam apenas 4 anos. Mas contextualize-se tudo isto: estes replicantes eram criados pelos humanos com a função de escravos - deviam, primordialmente, ser utilizados na conquista e exploração de outros planetas. Percebe-se a ideia: o uso de não-humanos em tais tarefas tão perigosas e arriscadas tinha uma enorme garantia: a inexistência de perdas humanas. Fazia-se o trabalho pesado, e nenhum Homem morria. Além disso, os replicantes, malgré a sua enorme sofisticação, queriam-se comportados como um qualquer robot: deviam executar a ordem humana, e tudo feito sem perguntas, sem dúvidas, sem hesitações. Pura (e mecânica) obediência. Mas aconteceu o inesperado: à medida que se foram apercebendo da sua "condição humana", mais intenso era o desejo de se libertarem do domínio do Homem. Daí à revolta foi um passo. Queriam a "emancipação". A criatura aspirava a ser como o criador. Legitimamente? Está aqui o grande jogo de emoções do filme! Perante uma verdadeira indistinção (física, psicológica, no fundo genética...) entre humanos e replicantes, qual o fundamento daqueles para liquidarem estes? Por outro lado, havendo essa indistinção, não seria então legítimo aos replicantes aspirarem a ter um "estatuto igualitário" aos humanos (designadamente, tendo a mesma longevidade)?

A estas duas questões correspondem os temas filosóficos abordados no filme: na primeira questão, está implícita a discussão de saber se, quando um humano mata um replicante, não será já um humano a matar outro humano?; na segunda questão, está em causa o dilema existencial dos replicantes: sendo tão humanos quanto os humanos, por que não viver tanto como os humanos?

É óbvio que, com uma temática assim, dir-se-ia que o filme foi feito para nos levar a aderir desde logo à causa dos replicantes. Mas talvez seja aqui que o filme mais falha, pois penso ter faltado alguma habilidade para promover uma maior afeição e proximidade entre nós (que vemos o filme) e os replicantes (ao contrário de filmes como ET e AI, onde essa ligação funciona bem melhor). Ou então talvez o filme deva ser visto duas vezes: uma, visto do lado dos humanos; outra, visto do lado dos replicantes. E porventura esta última seja uma visão mais... humana.

PS1 - Acrescente-se ainda que o filme tem uma magnífica (e inovadora, para a época) banda sonora. Vangelis no seu melhor.

PS2 - Quem visse logo o filme em 1982, e percebesse minimamente de cinema, via certamente que estava ali a despontar um grande actor. De nome Harrisson Ford.
*Texto escrito em 2005 no meu anterior blogue Renascer.

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