CITIZEN HUGHES
The Aviator, o novo filme de Martin Scorsese, foca-se na vida de Howard Hughes (1905-1976), um americano milionário, excêntrico, realizador e produtor de filmes, e, mais ainda, um dos maiores génios da aeronáutica do século XX. Por ironia, sendo o filme sobre um aviador, ele representa também (como o próprio já se encarregou de confirmar) o último voo de Scorsese para o Oscar. Quanto à obra em si, The Aviator tenta retomar o biopic na sua melhor tradição, o mesmo é dizer, e em termos paradigmáticos, tenta construir-se (penso poder dizê-lo) na esteira de Citizen Kane (1941). Mas, claro está (e não fosse este um filme de Scorsese), tudo feito com virtuosismo, isto é, numa síntese entre o aproveitamento do que há de melhor em termos de Escola, e o toque pessoal de Scorsese, que sempre inova, rasga, impressiona.
O filme tem, de facto, notórias semelhanças com a mais emblemática obra de Orson Welles. O que, sublinhe-se, em nada o prejudica, antes pelo contrário. E a grande questão é esta: terão sido Scorsese e The Aviator dignos de suceder a Welles e Citizen Kane? Penso sinceramente que sim. Em The Aviator, tudo está pensado para tal: desde a escolha da personagem a biografar (Scorsese sabia que para um grande biopic, uma grande personagem, e Howard Hughes preenche o tipo), passando pelos tópicos centrais do filme (génio - doença - solidão), até à excelência da realização (Scorsese, tal como Welles, foi, é, e sempre será um inovador do e no seu tempo).
O Aviador, como se acaba de referir, gira em torno dum triângulo temático, a saber: o génio, a doença, e a solidão. Pergunte-se se isto tudo é compatível com a felicidade, e temos a chave do filme. Mais concretamente, há que analisar duas dualidades fundamentais do filme: uma interior - a dualidade em Hughes entre o génio (ou, mais simplesmente, o homem) e a doença, e outra exterior - a dualidade entre Hughes e o mundo que o rodeia. Quanto à primeira, não tenho dúvidas em afirmar que vence o génio, vence o homem, vence Howard Hughes, apesar da doença. E no que toca este aspecto, há dois sinais esclarecedores no filme: um primeiro (necessariamente ligado ao homem) em que Hughes, apesar da doença, consegue amar, consegue, no fundo, alcançar essa "fusão" sentimental que espelha o amor (patente na partilha da sua garrafa de leite com Katharine Hepburn, gesto que, no contexto do filme e da personalidade de Hughes, adquire um simbolismo decisivo); e, segundo sinal (relativo ao génio), em que Hughes, apesar da doença, consegue ficar na história da aviação (quiçá mesmo na história americana), consegue ser O Aviador: a perseverança demonstrada em fazer o Hércules levantar voo é aqui também ela um exemplo decisivo, pois mais do que uma prova dada ao mundo exterior, representa sobretudo o vencer de um desafio de Hughes com ele próprio. E quanto à segunda dualidade (exterior), é aqui que mais nos lembramos da personagem de Charles Foster Kane, pois o percurso de Hughes (neste aspecto) quase que se diria idêntico ao daquele. Com efeito, e funcionando como um contrapeso à vitória do génio/homem sobre a doença, a relação de Hughes com o mundo que o rodeia pauta-se por uma infelicidade extrema, uma constante falta de comunicação, mesmo de integração humana. Tal como Kane, Hughes tem a infância sempre (anormalmente) presente - o sabonete, herança simbólica de sua mâe, "entranhado" no bolso, quase que representa, ao estilo de Pessoa, o passado (leia-se infância) roubado na algibeira...
Em síntese, este último filme de Scorsese aborda, com um realismo impressionante (a fazer lembrar Leone...), a genialidade humana e a loucura (como podendo ser, e muitas vezes são, duas faces da mesma moeda), a falta de integração dum Eu (Hughes) com o mundo que o rodeia, a sua incapacidade crónica de ser feliz com os outros, enfim, a solidão e a evocação constante da infância como única forma de a combater.
*Texto escrito em 2005 no meu anterior blogue Renascer.