29.3.09

EÇA E A ORIGEM DE "AS FARPAS"

Avançando na leitura de Filomena Mónica, chego à criação de As Farpas. Em carta dirigida a João Penha, datada de Junho de 1871, Eça de Queirós enuncia o objectivo da publicação: «Jornal de luta, jornal mordente, cruel, incisivo, cortante e sobretudo jornal revolucionário». Sobre o modelo de inspiração: «São as Guêpes, de Karr*, tratadas ao modo peninsular: mais fogo, mais vigor, mais violência e mais intenção. No estado em que se encontra o país, os homens inteligentes que têm em si a consciência da revolução - não devem instruí-lo, nem doutriná-lo, nem discutir com ele - devem farpeá-lo. As Farpas são pois o trait, a pilhéria, a ironia, o epigrama, o ferro em brasa, o chicote - postos ao serviço da revolução». Que bela primeira farpa!


*Editadas em Paris, sobre a realidade francesa.


23.3.09

GRAN TORINO

Olhando pelo espelho de Gran Torino (2008), de Clint Eastwood, vê-se a América de hoje. Naquele que pode bem ser o seu último aceno ao mundo do cinema, et pour cause, Eastwood traz-nos uma obra derradeira, plena de realismo, que traça um dos retratos mais fiéis da contemporaneidade americana. Walt Kowalsky é um sobrevivente da velha América, aquela que vivia do trabalho e do esforço, da rectidão e do conservadorismo. É também um sobrevivente da sua própria família e da culpa pelo seu fracasso como pai. E é ainda um sobrevivente da Guerra da Coreia (1950-53), dos seus traumas e dos seus fantasmas. No limite, é um sobrevivente dele próprio, sem ponte para o mundo e os outros. Ou, se se quiser, e num plano mais transcendental, Walt Kowalsky é alguém que sofre (rosnando) com a perda de um sentido americano de vida, vivendo num mundo onde já não há referências americanas; num mundo onde no lugar de Fords circulam Toyotas; num mundo onde os jovens, mesmo os inteligentes, não sabem o que fazer à vida; num mundo onde parece não haver futuro.

Contudo, no meio do caos, emerge a lição de Eastwood. Revisitando as origens americanas, o polaco Walt Kowalsky vai-se redescobrir numa mescla com os vizinhos Hmongs, onde particularmente estabelece uma relação pai-filho com Thao. O filme, a partir daí, centra-se todo numa redenção e dependência recíprocas, em que cada um precisa do outro para se reconstruir, em que cada um é a segunda oportunidade do outro. Thao herda de Walt o seu Gran Torino, o mesmo é dizer os seus princípios e ensinamentos. E Walt perdoa-se e é perdoado.

No mundo real, porém, nada podia ser assim tão simples. Faltava a maldade. A ordem natural da vida dá sentido ao sacrifício final de Walt Kowalsky. Dezasséis anos depois, Eastwood, surgindo silencioso da noite escura, tem mais uma vez um bando diante de si para abater. A expressão fulminante é a mesma mas desta vez não há a espingarda em riste. Vem desarmado. Tratava-se agora, não de fazer vingança, mas de garantir um futuro. Não o assegurar é que seria imperdoável.


22.3.09

ORA AÍ ESTÁ UMA BOA IDEIA...


...a de associar o Presidente da República à nomeação parlamentar de cargos tão importantes como os de conselhos superiores, altas autoridades, entidades reguladoras e provedor de justiça, defendida no Público de hoje por António Barreto, no seu artigo semanal. Todavia, vou um pouco mais longe: em vez de uma indefinida "associação presidencial" a essas nomeações parlamentares, por que não a passagem das mesmas, em sede de revisão constitucional, para a esfera de competência exclusiva do Presidente da República? Se se tratam de cargos onde é suposto presidirem pessoas independentes, isentas e acima de qualquer ligação partidária, por que não deverem elas ser nomeadas pela mais alta figura independente, isenta e suprapartidária do estado?

EÇA DE QUEIRÓS E A VISÃO NEGATIVISTA DO AMOR

Como bem refere Maria Filomena Mónica no prefácio da obra em apreço, distinguir, a propósito de grandes autores literários, entre vida e obra é sempre artificial. Na sua vida pessoal, parece que Eça não se deu lá muito bem com o amor. Em plena adolescência, terá ficado marcado pelo veto do seu tio ao namoro com a prima mais velha, o que fez com que precocemente se sentisse um homem pouco desejado. Posteriormente, a influência de Proudhon e a adopção do realismo terão também ajudado a moldar a visão trágica e negativista do amor que perpassa em muita da sua obra. Com efeito, o amor em Eça surge amiúde viciado na sua base, seja pela impossibilidade natural do incesto (Os Maias), pela proibição social e moral (O Crime do Padre Amaro) ou pelo adultério sem escrúpulos ( O Primo Basílio). E, curiosamente, é quase sempre sobre a personagem feminina, descrita pelo vazio mental, pelo sentimentalismo e pela inocência, que vai recair o onús da tragédia. É a mulher que ama, e o homem que desfruta. É a mulher que sonha, e o homem que friamente desfaz os sentimentos. É a mulher que se sacrifica, e o homem que segue vivendo. No fundo, é a mulher romântica, e o homem realista.

Em O Mistério da Estrada de Sintra (1870, em co-autoria com Ramalho Ortigão), ainda longe, portanto, da maturidade das grandes obras, Eça começa a desenhar aquela que viria a ser a sua visão fundamental do amor. Deixo aqui uma passagem (citada na obra de Filomena Mónica) correspondente a um dos últimos folhetins, "A Confissão Dela", escrito por Eça, em que o capitão inglês Rytmel comunica, através de carta, à Condessa de W a impossibilidade de aquele amor sobreviver: «Fias-te de mais no amor! Aquele amparo superior, aquele apoio sólido e protector, que todo o espírito procura no mundo, e que uns acham na família, outros na ciência, outros na arte, tu pareces quereres encontrá-lo somente na paixão, e não sei se isso é justo, se isso é realizável!». Mais à frente, o amor «é um desequilíbrio das faculdades; é o predomínio momentâneo e efémero da sensação; isto basta para que não possa repousar sobre ele nenhum destino humano. É uma limitação da liberdade, é uma diminuição do carácter; especializa, circunscreve o indivíduo; é uma tirania natural, é o inimigo astuto do critério e do arbítrio (...)».

NOTA DE ABERTURA

Hoje, aqui e agora, nasce um novo blogue. Oxalá tenha uma boa vida e alcance a velhice.