Um belíssimo filme. E um filme que, sobretudo, e para mérito inteiro do seu realizador (Alejandro Amenábar), sobreviveu àquilo a que muitos esperavam que claudicasse: a demagogia (e até fanatismo, de um lado e de outro) com que crescentemente se aborda o tema da eutanásia. Este aspecto é, a meu ver, plenamente confirmado pela análise à personagem de Ramón Sampedro: de facto, em momento algum nos é apresentada como vítima do destino (embora objectivamente o seja); pelo contrário, Ramón surge-nos, ab initio, com uma força interior esplêndida, plena de simpatia e enorme sentido de humor. Se não repare-se: não se zangou com o mar, que o "atirou" para aquela cama; também não se zangou com a vida, o que ele acha (e que é algo bem distinto) é que já não tem vida, já não vive humanamente; e, mais ainda, nunca perdeu a vontade de sonhar, o sonho, esse traço único do Homem (lembre-se aquele espantoso "voo", desde a janela do seu quarto até à lindíssima praia galega). Enfim, conhecemos afinal um Ramón Sampedro que de forma alguma parece estar ressabiado com a vida e o destino. Tudo isto não impede, todavia, (e nem tinha que impedir...), que ele esteja determinado na sua decisão de pôr termo à vida, ou, como agora se diz, de morrer com dignidade. Ainda assim, note-se a grandeza de Ramón: apesar de uma morte digna ser a grande causa da sua vida, em momento algum há assomos de egoísmo ou mesmo de egocentrismo - tudo estava pensado na cabeça de Ramón para não prejudicar (leia-se incriminar) quem o ajudasse a morrer. Para este homem, os fins não justificavam os meios.
Sublinhe-se ainda o amor em Ramón: "A pessoa que me amar será aquela que me ajudar". Para ele, o amor surge como expressão máxima do respeito absoluto pelo outro.
Outro aspecto digno de realce no filme foi o não esquecimento da Igreja como parte importante no debate sobre a eutanásia (ou, mais latamente, sobre a defesa da vida). Contendo uma crítica explícita à doutrina católica actual, o diálogo entre Ramón e o padre da igreja espanhola (também ele tetraplégico) é um dos momentos altos do filme.
Para além de todas estas considerações, há uma que ainda falta fazer. E que é a mais sui generis: é que o filme, para mim, encerra uma espantosa ironia: tendo como (pretenso) objectivo levar-nos a defender a eutanásia (pelo menos no caso concreto de Ramón), o que é facto é que acabamos por não querer que ele morra..., não no sentido de não querermos respeitar a sua vontade, mas porque rapidamente criamos afecto com Ramón, e quem é que gosta de ver partir alguém que estima?
De resto, três notas finais: primo, a magnífica interpretação de Javier Bardem (decerto o melhor actor espanhol da actualidade); secundo, a excepcional captação, pela câmara de Amenábar, da infinita beleza da Galiza (maxime da sua deslumbrante costa); e tertio, o Oscar é mais do que merecido, e vem acentuar o (justo) domínio do cinema espanhol nos últimos anos na categoria de melhor filme estrangeiro.
*Texto escrito em 2005.
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