19.4.09

A COR DO DINHEIRO


O JOGO PELO JOGO

Lembro-me de ser criança e ir a salões de snooker, ora pela mão do meu pai, ora pela do meu irmão (8 anos mais velho). Lembro-me de jogar com um e com outro, de ganhar (menos) e de perder (mais...) com um e com outro. Sempre que perdia, lembro-me da fúria silenciosa que tomava conta de mim; mas, quando ganhava, era tal a sensação de realização, de autoconfiança e de orgulho, que me sentia o rei do mundo. Não sei porquê, mas a atmosfera dum salão de jogos, particularmente a da sala do snooker, com as mesas como que geometricamente dispostas ao jeito duma planta pombalina, e os seus reluzentes tapetes verdes, deixava-me fascinado. E quando nela entrava, sendo criança, logo deixava de o ser. Vinha o espírito de competição, a vontade de vencer os jogos, a concentração, o rosto fechado numa pose de homem. Por coincidência, foi também por essa altura que vi pela primeira vez A Cor do Dinheiro (1986), de Martin Scorsese, onde fui encontar na personagem de Vincent Lauria uma espécie de alma gémea. Hoje, muitos anos depois, e a propósito do seu mais que tardio lançamento em DVD no mercado português, vale a pena deixar algumas notas sobre o filme.

A Cor do Dinheiro
é um dos filmes da minha vida. E, sendo também um dos filmes das vidas de Paul Newman e Tom Cruise, é acima de tudo o filme que os cruza na vida. Cruza um peso-pesado com um neófito promissor. Cruza a geração do Actors Studio com uma nova geração de Hollywood. E muitos vêem nesse cruzamento uma passagem de testemunho entre Newman e Cruise - um momento de transição simbólico.

Paul Newman é Eddie Felson, um antigo "monstro" do bilhar, cuja carreira assume quase contornos de mito, mas que a veterania conduziu a um pouco transparente vendedor de whisky. Paralelamente, a sua relação com o bilhar passa a ter no centro o dinheiro: Felson, com o decorrer dos anos, tornara-se uma espécie de "empresário de bilhar", que detecta novos talentos e daí procura, nos típicos ambientes de apostas dos salões de jogos, tirar para si os máximos dividendos. Dir-se-ia que, com a decadência do tempo, o desejo de vencer os jogos (como jogador) deu lugar à vontade de ganhar dinheiro fácil (como apostador). Mas eis que, através do som duma tacada forte ("uma abertura potente"), Felson descobre Vincent Lauria (Cruise). Scorsese acompanha a situação: a cada abertura de Vincent é o close-up de Newman que surge. Daí até à redenção final de Felson, a câmara não pára de girar (às vezes literalmente) em torno de Newman. Porque é disso mesmo que trata o filme: da redenção, através de Vincent, de Eddie Felson. Na excêntrica e genial personagem de Tom Cruise, Felson ora vê o delfim ora se vê a si próprio, mergulhando a partir daí o filme num ambivalente e fascinante jogo de emoções. A redenção vai consistir numa redescoberta por parte de Felson da pureza do jogo, do prazer de jogar o jogo pelo jogo, de voltar a pedir a cada adversário que leve para a mesa, não dinheiro, mas o seu melhor jogo. No fundo, esta redenção de Felson é um regresso: um regresso à vida, um regresso a si próprio e um regresso à autenticidade. O dinheiro, esse, perdeu a cor.

NOTA (1): Foi com A Cor do Dinheiro que Paul Newman ganhou finalmente o seu óscar de melhor actor. Numa altura, é certo, em que já não precisava dele para nada. Em todo o caso, há interpretações de certos actores que são autênticos Manuais de Representação. Esta de Newman é uma delas (lembro-me também, por exemplo, da interpretação de Robert De Niro em O Cabo do Medo). Quando passam poucos meses desde a sua morte, aqui fica a minha homenagem.

NOTA (2): Por falar em Manuais de Representação, vejam a realização de Scorsese e têm aí um Manual de Realização.

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